O processo de redemocratização do Estado brasileiro também foi marcado pelo esforço de segmentos da sociedade civil para consolidar, através de leis e normas, direitos para cidadanias, entre elas a referente às crianças e aos adolescentes.
Hoje (13 de julho de 2018) o Brasil comemora 28 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/90, que, promulgada, fincou um marco de compromisso da família, da sociedade e do poder público na proteção integral de crianças e adolescentes, considerados sujeitos de direitos em peculiar processo de desenvolvimento, à luz do Artigo 227 da Constituição Federal de 1988.
Por outro giro, no limiar de completar três décadas de vigência, persiste o sentimento político e social de um enorme hiato entre a lei e a realidade. Mencionado abismo social muito se deve a um descompasso entre as normas que foram criadas e aperfeiçoadas ao longo do tempo, com o necessário investimento orçamentário e principalmente a formulação de políticas públicas consistentes que pudessem alçar a criança e o adolescente a uma verdadeira cidadania.
Sabe-se que o país conta há anos com o Disque 100, uma ferramenta de denúncias contra violações de direitos humanos. As denúncias de violações contra crianças e adolescentes ganham de todas as demais violências, sendo o abandono e a exploração sexual infanto-juvenil os principais relatos. De acordo com a Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos, no ano de 2017 tivemos 142.665 denúncias, sendo a violação contra crianças e adolescentes a líder dos relatos, como nos anos anteriores.
No ano de 2017 foram registradas 84.049 denúncias de práticas violentas contra crianças e adolescentes, sendo que muitos casos envolvendo mais de um tipo de agressão e mais de uma vítima, totalizando 130.224 infanto-juvenis vítimas de violações em 2017 e 166.356 casos de violações. Tem-se, ainda, que o maior número de denúncias acaba envolvendo crianças entre 4 e 7 anos de idade, sendo o abandono a maior incidência de violação de direitos.
Na esteira dessa tragédia social, recente pesquisa produzida pelo Atlas da Violência de 2018, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), aponta que crianças e adolescentes são as principais vítimas de estupro, com 50,9% dos casos registrados em 2016, na sua maioria cometida contra menores de 13 anos de idade.
Essa mesma pesquisa relata que no Brasil, em 2016, a taxa de homicídios de jovens representa 53,7% das vítimas totais no país, na sua maioria homens e negros, na faixa de idade entre 15 e 29 anos, tendo ocorrido um aumento de 23,3% nos assassinatos para esse grupo em comparação aos demais anos.
Esse quadro social é resultado de uma ausência de políticas públicas sociais que deveriam corrigir as desigualdades, mas também promover uma nova cultura de percepção sobre a criança e o adolescente como atores sociais, sujeitos de direitos consagrados pela Constituição Federal de 1988.
É preciso recuperar um legado deixado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente nesses 28 anos, que são os conselhos de direitos, órgãos paritários de participação da sociedade civil organizada e do poder público, em todos os níveis (municipal, estadual, nacional) responsáveis pelo controle social e pela formulação das políticas públicas protetivas para a população infanto-juvenil.
Os conselhos de direitos devem assumir seu papel protagônico no campo da exigibilidade dos direitos, renovando suas composições para uma representação política para além das fronteiras de seus interesses pessoais e institucionais, colocando a criança como prioridade absoluta.
Somente assim poderemos traçar um horizonte para uma mudança de cenário nacional, passível de comportar uma cidadania infanto-juvenil alicerçada no respeito aos direitos humanos e de inspiração democrática.
Carlos Nicodemos, Membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB e ex-presidente do Conanda – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente